sexta-feira, 26 de março de 2010

A QUESTÃO

Fui notando apreensiva o afastamento sutil,os sorrisos nervosos,rápidos em sua boca fina como um rasgo. Percebi o afastamento de suas mãos,rompendo o contato procurado,necessário.
Percebi o seu olhar baixo,figidio e estranhamente alerta.
Senti falta de coisas simples que preenchiam meus dias.Senti falta das mordidas inesperadas em minha nuca que me arrepiava o corpo todo.Senti falta dos abraços espontâneos que me aprisionavam.Deixava-me prender e não arquitetava a fuga.
Senti falta falta de quando ele encostava o nariz em meu colo para aspirar o cheiro natural de meu corpo,antes de ir trabalhar,como a querer guardar,abastecer-se na ausência,uma reserva para a saudade.
Senti falta das esfregadelas da toalha úmida,em meu rosto,após o banho morno, "limpeza de pele" dizia.
Senti falta do mergulho rápido de sua língua em minha orelha.
Ele foi se calando. Era dezembro,aniversário de vinte cinco anos de casados,mês do Natal.
Foi desaparecendo pelos cantos claros da casa,pelos cantos escuros.Escondeu-se em páginas de livros grossos e supostamente interessantes,que lia compenetrado,alheio aos ruídos que eu fazia.
Escapou de olhos fechados-serenos,deitado no sofá,ouvindo suas músicas clássicas de um instrumento só,de sopro.
Quem sabe onde?
Quem sabe o que?
Fugia nas pinturas de parede, fazendo rebocos,inventando ocupação. Esgueirava-se no trato diário das suas orquídeas roxas-vermelhas-verdes que transplantava com meticuloso cuidado e paixão,que não dava mais prá nossa relação.
Fugia dos encontros inevitáveis ,divididos entre ambos no espaço apertado da casa.
Não aceitava mais o café doce e forte que eu lhe levava na cama,ao amanhecer.
Fazia regimes malucos prá não se sentar à mesa no almoço,no jantar,prá não falar quem sabe a palavra salvadora.
Tão previsível. Tão claro e ao mesmo tempo tão sombrio. Tão desconhecido de mim.
De repente, da vida que vivemos juntos, dos sonhos que sonhamos juntos,das promessas mudas,feitas um ao outro, não restou nada. Tudo se fraguimentou sem ruídos,como num castelo de cartas.
Tudo ficou tão pesado e tão frágil,como se eu pisasse em vidros finos,descalça. A ponte invisível que nos unia,ruiu, implodida por palavras traiçoeiras, mal definidas,que jorravam da boca dele; por falta de palavras que não conseguiam sair de minha boca cerrada pelo medo da perda.
Os silêncios cada vez mais longos,dolorosos,viraram passaporte livre para a fuga,para o abandono dele do leme da vida a dois .Fugiu daquele mundinho acanhado que agora o oprimia.
Em uma madrugada de fevereiro,finalmente escapou; lá fora a algazarra alegre e bêbada de foliões inconsequentes,que regressavam às suas casas, cá dentro o desespero mudo inundava os olhos e o coração de lágrimas.
Ironia da questão, eu o conheci numa noite de fevereiro de hum mil novecentos e oitenta e um. Amor meu,à primeira vista,prá sempre.
Era carnaval.

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