quarta-feira, 14 de abril de 2010

"CUVITEIRA" conto

_Berta !
Ninguém a chamava pelo nome, Belinda, só pelo apelido que, aliás não gostava. Parou de súbito a caminhada apressada,à saída do colégio; voltou-se e, a viu correndo em sua direção.
Sabia seu nome, Alicinha,porém só a via de vez em quando,durante o recreio,mas nunca se falaram. Pertenciam a mundos diferentes,não dividiam amigos, não frequentavam a mesma sala de aula,mas eram da mesma série.
O mundo de Alicinha era povoado de coisas caras,era o que pensava Belinda,roupas bonitas,mochila da moda; o pai a buscava à porta da escola com um carro brilhoso,grande. Belinda já tinha visto até foto da família dela,no jornal da cidade; diziam que o pai de Alicinha era fazendeiro.
O mundo de Belinha, era repleto de obrigações,horários determinados,por isso a pressa à saída do colégio. Era um mundo oprimido pela ignorância da mãe e a autoridade do pai, não havia descanso,pois até a cama de solteiro,era dividida com a irmã. O momento do almoço era para ela o pior,a mãe colocava o arroz,o feijão,o ovo frito e três rodelas de tomate,cimentados na marmita de alumínio,não podia esquentar a comida fria,pois a cozinha já havia sido limpa pela mãe. Belinda beliscava a comida,não sentia fome diante daquela marmita.
Os dias de Belinda eram longos mas, as noites eram mais longas ainda. Os pais sempre discutiam à noite quando o pai chegava do trabalho, as brigas eram sempre por causa dos irmãos que queriam ficar" o dia todo" no campinho jogando bola e, de lá vinham com as roupas sujas de terra vermelha .
Belinda tinha dois amores na vida: os livros de contos de fada que lia na biblioteca do colégio, e o pequeno porquinho branco com bolas pretas que ganhou do padrinho;Brinquinho a seguia por toda a parte,quando estava em casa.
Belinda olhou Alicinha rapidamente,ficou envergonhada. Alicinha parecia a boneca que estava na vitrine de uma loja no centro e, que Belinda admirava e desejava secretamente,todas as vezes que passava por ali, seu caminho para casa. Alicinha era loura, olhos azuis,os cabelos eram cheios de cachinhos presos por fitas cor de rosa. Menina bonita até com o uniforme cinza do colégio.
Belinda estava de uniforme também mas faltava-lhe um botão na camisa de gola puída;os sapatos pretos,não brilhavam mais de tão gastos ;os cabelos castanhos,secos,escapuliam do elástico encardido e frouxo que os prendiam no rabo de cavalo.
Alguns livros estavam com as capas de papel de pão, rasgadas. Os cadernos tinham orelhas,estavam à mostra em seu braço magro. Belinda não tinha nem uma sacola para carregá-los ou escondê-los da curiosidade de Alicinha.
Ficou esperando com os olhos abaixados.
_Você mora perto da casa do Pedro Luiz, Não é ?
Fez que sim com a cabeça.
_Entrega prá ele ! Eu quero resposta, diz a ele!
Passou para as mãos de Belinha,uma folha de papel de brochura,bem dobrada, em seguida voltou correndo para perto da rodinha das amigas que riam animadas.
Belinda segurou aquele pequeno papel dobrado,como quem segura um tesouro, ficou imóvel um instante,depois olhou ao redor mas não enxergou nada, ninguém; o que viu foi ela mesma: grande, maravilhosa,poderosa.
De repente deixou de ter importância as manhãs com fome, a comida fria no almoço,os gritos da mãe, as noites sem espaço na cama, o frio das madrugadas com cobertor pequeno para duas,ela e a irmã.Acordada,o olhar pregado nas sombras das árvores do quintal que dançavam feitos montros,na parede do quarto.
Andou distraída,depois apressou os passos e ,quase sem perceber,começou a correr. Corria desenfreadamente,subia a ladeira de paralelepípedo sem olhar para o chão,o coração estava a ponto de escapulir pela boca pequena.
As lágrimas escorriam empurradas pelo vento, dando o gosto salgado na boca; não chorava, ria, ria muito. Felicidade! Gestos pequenos podem te alcançar! Sentia-se suspensa,flutuava. Avistou ao longe sobre o aterro, a vila em que morava, viu a mãe com as mãos na cintura, na frente do portão da casa,gritando com os irmãos que jogavam bola, na terra vermelha.
Viu ele, Pedro Luiz, com a bola presa debaixo do braço esquerdo, estava de calção, sem camisa, descalço,com os cabelos pretos-lisos-fartos,caindo-lhe sobre a testa. Belinda, pela primeira vez olhou para ele, seu olhar era descobridor,interessado. Achou-o bonito.
Entrou apressada,jogou os cadernos sobre a mesa,sentindo o rosto quente como fogo. A claridade de fora cegou-a no ambiente escuro da cozinha , virou-se para sair pela porta e se chocou com algo duro como uma parede.
Era o pai.
_O que você esconde aí?
Belinda olhou para cima aos poucos,escalando aquele obstáculo gigantesco, até encontrar os olhos escuros,escondidos atrás de sombrancelhas grossas e negras. O papel lhe foi arrancado violentamente das mãos,desdobrado e lido pelo pai.
_ Sua "CUVITEIRA !"
Belinda sentiu a pancada da voz, da palavra, esmagando-a, encolhendo-a, açoitando-a, prensando-a no canto escuro da parede,onde caiu sentada,se encolhendo com o rosto enfiado entre os joelhos.
Começou a chorar por ter feito algo tão grave e ter decepcionado o pai.
_( O que era cuviteira ? Não sabia. )
Pegou o papel amassado, jogado com desprêzo ao chão. Leu nas letras infantis,como as dela mesma,bem desenhadas dentro de um coração o recado:
_GOSTO DE VOCÊ.

Obs. Alcoviteira: Mexeriqueira, leva e traz, que serve de intermediário em relações amorosas.

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