sábado, 10 de abril de 2010

PACO

_Mataram Paco!
Não me encontrava alí,aliás não sabia onde estava.Há muito,ou pouco tempo,não tinha noção, meus olhos eram prisioneiros de gotinhas d'água que jorravam da mangueira,pressionada pelo meu dedo polegar,fazendo chuveirinho. Estava molhando as plantas próximas à varanda do
sítio;meu corpo estava alí mas meus pensamentos,estavam longe,muito longe,em nenhum lugar.
Aquelas gotinhas que caiam,eram sugadas rapidamente,se escondiam no interior da terra seca,umedecendo-a; junto com as gotinhas,ía o que mais incomodava e pesava em meu coração.Sentia-me vazia,ou melhor leve,aberta à sensações revigoradoras.
Susto!
Tudo que estava suspenso,longe,espalhado,de repente se juntou no tranco,colocando-me inteira,lúcida,presente,alí,no lugar,no momento.
_ O que?
Não obtive resposta.
As emoções em turbilhão ficaram na beira de tudo: dos meus dedos trêmulos, dos meus pés pregados ao chão,fazendo com que não percebesse a água, sem a pressão do dedo
jorrando sobre o tennis; dos meus olhos se expandindo nas órbitas secas; do coração crescendo,ocupando um limite maior do que o possível,como se estivesse suspenso,em carreira para sair pela boca.
A razão se agarrou no engano: ouviu mal,aliás andava desconfiada que minha audição,estava falhando,pois sempre eu repetia,"O que foi que você disse?" Foi essa pergunta que repeti quando ele,cabisbaixo,passos lentos,me olhou sem emoção,ou para ser justa com ele, equilibrado,respondeu:
_Uma camionete preta,em alta velocidade,matou Paco. Ele foi atravessar a estrada e...foi atropelado. Caiu morto!
Assim, um relato nu e cru.
A mangueira,de repente criou vida em minhas mãos,pesou muito e eu a soltei. Perdi a consciência dela e tudo o mais se tornou pesado,um peso difícil de suportar,fazendo com que eu caísse ao chão e, permanecesse lá.
Chorei. Chorei sentida. Chorei só. Chorei por Paco.Chorei por mim. Meu choro estava carregado de dor,agonia,perda,solidão,uma tristeza infinita.
Não houve consolo,não houve a palavra e nem o abraço cheio de conforto dele;não houve se quer um olhar de reconhecimento,de afeto diante da dor.
Chorava e dizia:
_Meu Deus! Ele estava agora,há pouco do meu lado,me pedindo água.Depois foi se deitar no buraco úmido que havia feito um pouco antes,no canteiro de flores!
Como isso foi acontecer?
Há pouco mais de vinte dias,conheci Paco,foi amor à primeira vista. Em seu olhar cor de café ralo com mostarda,estava gritando a fidelidade,a docilidade,o amor que habitava em seu grande corpo e alma. Ele tinha enderêço conhecido mas seu destino era incerto, caçador, viajante. Muitas vezes ele permanecia alí,no sítio,querendo nossa companhia. Quando o raio tímido do sol,rompia uma nuvem mais densa e solitária nas manhãs,ele entrava feito um foguete no sítio,
dava voltas à casa e nos chamava apressado:
_Ei! Eu estou aqui! Quero ver vocês! vamos,abram a porta! Tô com saudade!
Não era desses que entravam em sua casa sem cuidado,sem pedir licença. Não!
Ficava à entrada em atitude solene,esperando um afago, uma recompensa,um olhar. Olho no olho, direto. Dizia dessa forma que ele era bem vindo,sempre. Aqui era seu lugar, onde e liberava suas defesas,pois sabia que aqui,ninguém lhe faria mal.
Paco,sem o saber era elo de ligação. Ele completava o monólogo silencioso, longo,sob uma aparência calma, de uma intimidade relativa,educada,que permeava o meu mundo naqueles dias turbulentos. Uma vida de aparências,dividindo sala no sítio.
Conversas amenas,formais, superficiais,educadas, pensadas,num jogo sem vencedores que durou vinte e cinco dias de segunda chance... Será?
Algo mudou. Paco não apareceu. Cinco dias já. Senti sua ausência,mesmo ele alimentando a conversa de nós dois. Domingo à tarde,calor infernal. Paco. Cansado. Tristonho. Só queria dormir e lugar nenhum era bom o suficiente. Reclamei:
_O que está acontecendo?
_Você está muito estranho!
_Não estou gostando!
_(.......................................)
_Deve ser que ele ficou todos esses dias,com as crianças que chegaram para o fim de semana no condomínio.Tá cansado de tanto brincar no rio. Disse ele.
_......................................
O rio de águas claras e geladas,era o lugar preferido de Paco,até sozinho,ele brincava lá.
Segunda-feira amanheceu com ele à porta da cozinha, dormiu aqui, mas não nos avisou de sua presença. Terça -feira. Tristonho. Eu também. Minha partida estava se aproximando. Nada resolvido. O assunto sem ser tocado. Mantinha uma aparência calma mas tudo em mim desiquilibrado. Paco sumiu depois do almoço. Não veio dormir em casa. Quarta-feira já estava aqui muito cedo,porém não chamou ninguém.
Trinta e três baldes de água, tentando dar vida à mudas plantadas e ressecadas,
que me davam o que fazer, que me faziam sentir necessária, que me esgotavam,que me afastavam, que me salvavam, que me tornavam vazia de pensamentos ruins, que me davam uma segurança na superfície. Paco enjoou da mesmice dessa jornada,parou de me acompanhar e se deitou à sombra do pé de jatobá.
Saciada a fome com frango cozido com legumes,arroz, feijão e salada de rúcula, sossegamos todos. Paco ficou sob o ventilador da sala. Continuava muito calor.
Pontualmente às três horas,inicio outra jornada de fuga, ou seria de encontro com minha essência, molhando plantas, agora as que ficavam na parte mais baixa do terreno, com a mangueira comprida. Paco me acompanhou,mas logo se jogou embaixo de uma árvore e, aí ficou; dormiu pouco, inquieto procurou outro lugar e mais outro. Nada parecia lhe agradar. Muito quente,o suor escorria pela minha face.
A última vez que o vi,foi quando ele ficou me rondando, me olhando:
_Você quer àgua?
_Está com sede? Tá?
Larguei a mangueira e dei-lhe água, aproveitei e dei-lhe também um pedaço de pizza de calabreza e muzzarella.Gelada. Ele comeu com vontade, e eu voltei ao que estava fazendo. Confesso, esqueci dele, de mim,zerei a alma,fui embora, prá nenhum lugar. Só, nem comigo.
Voltei de repente,no sobressalto,não querendo entender o que tinha ouvido. A voz. Perto . Longe....
_ Mataram Paco!
Quero crer que todos da vizinhança, sentiram a morte de Paco, ele era querido. Particularmente,tive o privilégio de ganhar o seu amor,metade é claro,pois Paco o dividia com ele também,mas eu tinha um sentimento egoísta de disputar o amor, a amizade,prá compensar o abandono,o vazio, a solidão, a insegurança, que moravam em mim, e que ainda estão comigo.
O tempo vai apagar suavemente essa quarta-feira fatídica,em que os ponteiros marcavam dezessete horas, vai apagar aquele instante em que algo chamou a atenção de Paco, fazendo que ele acordasse de seu sono profundo e, corresse de encontro à morte, que lhe espreitava sob as rodas de uma camionete preta,em alta velocidade.
Não tive coragem de lhe ver caído na estrada. Não queria essa última imagem em minha lembrança.
Soube depois que testemunhas da tragédia tentaram lhe socorrer, que ele só conseguiu dar dois passos,antes de cair morto. Não houve sangue,apenas um olhar triste, parado, fitando o vazio.
Não choro mais a sua morte, apenas guardo num cantinho especial de meu coração, a imagem de um grande cão labrador amarelo, doce, gentil, meu elo, que chamávamos carinhosamente de Paco.
Saudade.

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