domingo, 4 de abril de 2010

REGIME PARCIAL conto

O meu lado racional,inteligente,ponderado,aflora às vezes e percebe o tempo passado,perdido,mas nenhuma força consegue mudar a situação;são segundos,minutos,horas,dias,meses...
Três longos anos que escorreram pela poltrona rosa-desbotada,manchada de cera vermelha ,a mesma cera que tentei dar brilho de espelho ao chão encardido. Poltrona deformada pelo meu corpo inerte jogado em seu descanso.
A poltrona não me abraçou e não me escondeu,a poltrona simplesmente aguentou meu corpo e combinou com ele, o abandono.
Meu olhar perdido-vítrio-fugidiço,refletiu a claridade exterior que invadiu expremida pela porta .
Meu pensamento não se fixava em nada pois queria evitar a dor,às vezes ele escapava para coisas bobas,como a porta ser de saída ou ser de entrada ,a porta ser retangular,a porta ser pequena.
A luz do sol que conseguia atravessar o vão estreito da porta,cegava,ofuscava,deixava mais negro cá dentro,trazia mais incômodo aos meus olhos já cheios de luzinhas que piscavam na borda.
Percebia os dois mundos que habitava,o inerte-escuro-sofrido e, o povoado de movimento-vida,ao meu redor mas eu não estabeleçia contato,não comparava,não analisava.
Via, de onde estava,pequenas folhas-novas-insignificantes,de um verde escuro brilhante,agitadas pelo vento, num movimento previsível,prá lá-prá cá.Ouvia os passos apressados de anônima gente,pisando o chão de calcário,que de repente passavam na moldura da porta,como num filme de animação,muito rápido.Meu pensamento era fujão,acompanhava alguma dessas pessoas e tentava brincar de advinhar: O que carregavam em suas sacolas,bolsas que deixavam o corpo tão arcado?
Tentava imaginar qual sofrimento,qual segredo,qual desesperança,qual alegria,estavam agarradas aos seus corpos,às suas mentes que as faziam se moverem,manterem-se em pé,lutando,sobrevivendo,até ao final do dia?
Qual seria a receita?
Isso realmente me importava?
Um fiapo de esperança,às vezes se insinuava, ensaiava a reação;me dizia que eu não fazia parte desses momentos escuros,dessas horas paradas,desses dias perdidos,prisioneiros.
Depois... Isso importava, a quem?
Meus olhos castanhos que enquadravam a porta,fixos no ponto de luz,repetiam uma cena interna,em tela particular: O abrir e fechar de portas,gavetas do armário de madeira de lei,emperradas pelo tempo e umidade, o retirar apressado de calças antigas de linho azul,esquecidas em cabides; uniformes do tempo em que trabalhou no banco;gravatas que ainda conservavam o último nó;cuecas com elásticos frouxos;lenços,meias que não usava mais. Tudo foi recolhido sem organização,e jogados para dentro da bolsa grande de viagem.
Não esqueceu nem o cadarço encardido ,sem par que encontrou.como a não querer deixar pistas,rastros,de sua presença na casa.
Ele não dizia nada,não olhava para mim, que estava no canto do quarto,chorando diante da certeza da partida dele. Acompanhei seus movimentos em nosso quarto, só chorava.
-Por favor me abraçe! Queria gritar,mas a voz não saia. Eu não sabia o que dizer,aliás nunca soube colocar em palavras o que eu sentia por ele. Tinha uma certeza de que não precisava por voz no meu amor por ele,estava no meu olhar,nas coisas simples do dia a dia;,nos abraços inesperados que eu gostava de lhe dar;nos risos soltos das piadas ou coisas engraçadas que ele dizia; até nas pequenas mentiras que dizia a seu pedido ao telefone.
-Ele não está!
Engano fatal.
Não saberia viver sem ele,não depois de vinte cinco anos de amor,afeto,companheirismo,era o que pensava,o que tinha certeza.
O medo apertava meu peito,medo de que a agressão que se escondia nos olhos dele,me atingisse em forma de palavras que não queria ouvir,pois sabia que nunca mais as esqueceria.Eu era assim.
Ele sabia como ninguém ser sutil e agressor com as palavras,suavemente...
Podia,com palavras, fazer-me sentir um quase nada e me exigir mudanças,pois me comparava com alguém que ele admirava. Tudo dito durante conversas amenas mas que me faziam chorar durante o banho.Ele nunca notou.
Ficava magoada,me perguntava com quem ele queria casar,pois essa que se desenhava em seu desejo,não era eu. A mágoa me conduziu para mais dentro de mim mesma, me isolou,me deu uma falsa impressão de proteção,mas também não me deu armas para lutar por ele,apesar de tudo.
Inútil,tudo seria inútil,ele não me daria nenhuma chance.
-Se era para terminar,por que começou? Perguntava-me.
Em meu peito sufocado pela dor,carregava o mesmo amor de vinte e cinco anos juntos,agora ,um amor mais tranquilo,seguro,cheio de paz e de ternura.
Amor simples,desses que não faziam perguntas e nem esperavam respostas,pois confiava cegamente.
Amor sonhador,como no poema que escrevi sobre uma casa na montanha,com nós dois construindo uma vida juntos,vendo a cidade ao longe.
Amor incondicional,que aceitava,defendia defeitos que via nele.
Amor de todo dia, de cada dia,temperado no café doce e forte que eu lhe levava na cama e que ele apenas bebericava,pois gostava de café fraco e doce,"café carioca",como ele dizia.
Amor de muitas formas,de um único cheiro,disfarçado com o perfume caro que usava.
Amor que acumulou lembranças cheias de valor:o dedão do pé com unhas chatas e largas,com calos secos,resultado de pés presos em sapatos fechados,o dia todo; os cabelos encaracolados,grossos que lhe cobriam os ombros,as costas,o rosto de barba cerrada,o bigode; a cabeça de cabelos ralos no meio e cheios dos lados,que lhe dava um ar de frade franciscano,cheio de pecado; o olhar castanho claro,quase mel que às vezes me olhavam com segundas intenções.
Amor maduro,eterno aprendiz,que se aquietava em seus braços e se deixava ficar depois do gozo.
Amor cúmplice que lhe cobria as ausências com os filhos.
Amor de equipe que lhe apoiava nos projetos cheios de sonhos.
Amor de bando,repartido entre os quatro,em doses iguais.
Amor companheiro que lhe seguia por esse mundo de meu Deus.
Amor registrado em fotos,cartões,bilhetes, cartas,guardados por mim.
Amor parcial,só meu por ele,e só agora conhecido por mim,o inicio separado no cartório,encerrando o papel importante da união dos dois:
"Regime parcial de bens".

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